sábado, julho 01, 2006

crônica nª2 - O homem estrambólico e a geladeira

Vinte passos tropeçados. A maior atração da vila corta a esquina para mais um destino indefinido. Andam pra lá e pra cá e não se decidem. O homem segura com braços rijos sua maior conquista Ele já se acostumou com a velha ferraria: é bela, descongelante e acende automaticamente - modelo antigo, mas atraente. Há tempos atrás tomou algumas esfoladas de um Fusca parado sobre a guia, um trauma daqueles para o dedicado homem estrambólico. Ele acha que às vezes sua companheira é um bocado frigida e tende para uma indiferença vil, justamente nos momentos em que o amor toma de ataque seu coraçãozinho. Mas isso ele vai levando. E tudo acaba bem quando, na volta do passeio, o motorzinho possante da geladeira volta a soltar suas faíscas no canto mais precioso da casa amarela. Um alivio.
Preciso confessar uma coisa. Sempre quando via o casal esticando as pernas achava-os bem cafonas para tempos tão túrgidos como esses. Mas eis ai a prova de que o amor rompe fronteiras e transgride. O homem enfermeiro da rua de baixo pensa na hipótese insensata e crê piamente que nosso amigo estrambólico sofre de alguma mal nos macaquinhos do sótão. Que bobagem, queria eu ter uma conversa franca e esclarecedora com esse equivoco vestido de branco. Ninguém mais precisa de médicos nesse bairro que esse louco aplicador de injeções à baixo custo. Defendo a união do casal, pois acredito que há algo muito maior por trás desse affair. Numa dessas espiadas pela janela, vi uma cena chocante que encheu meu coração de sentimentos tenros e aprazíveis. O dono da loja de bebidas não deixou-os entrar no estabelecimento dele. Motivo? Pouco importa, o que mais valeu foi a generosidade de nosso amigo que, importuno pela negativa ouvida, abriu mão de um bom trago matinal pela companhia maciça de sua companheira na praça cheia de pombas e raios UV. E ali ficaram, os dois parados, pensando na vida que os aguarda. E que vida será essa?
As segundas intenções não tardaram desde quando nosso rapaz estrambólico descobrira o real motivo da existência ao saborear mais um de seus picolés de menta. O sabor preferido dele, por sinal. Era assim, na tarde quase caindo e no sereno quase chegando, que ele se divertia. Caçava escabrosamente alguma gripe espanhola naqueles 20 centímetros de massa verde e fria. Era um hábito, vale-se dizer, e ao término de seu acepipe, conduzia o rostinho tristonho para sua casa amarela. Lá, ligava a TV, só por esporte, e se acaba ali pelo sofá mesmo. Os quadros do quarto/sala eram achados e disso ele se gabava muito. Haviam ali verdadeiras preciosidades que receberam prêmios de curadores e museólogos de todo o mundo mas que, após uma entre safra de tendências artísticas, ganharam a marginalidade dos becos sujos da minha vila. O desenho abóbora era o mais interessante. Uma abóbora, laranja e grande. Uma abóbora.
Foi numa dessas buscas pelos entulhos valiosos da cidade que apareceu a sua Monalisa. Tinha um metro e cinqüenta e dois de altura, quarenta e nove imãs decorativos e um corpanzil de trancar avenida . Sua dona a magoou profundamente por uma troca repentina, por outra horizontal e com vidro mostrador na porta. Estava na completa sargeta e nosso rapaz estrambólico trouxe a ela novamente os prazeres da vida novamente.
Mas voltando ao picolé. De principio havia apenas uma relação servil entre os dois. Um “pede que eu faço” sem qualquer afetividade. Demoraram cerca de 46 picolés baratos de menta para a ficha cair. A geladeira, recém instaurada a sociedade, era o armazém desses alimentos de baixo valor mercadológico, tão visados pelo nosso personagem. As gripes espanholas nunca vieram, os descongestionantes nasais comprados jamais foram usados; o estalo apareceu quando, numa dessas fúrias corriqueiras no terreno cheio de lixo, percebera que sua vida devia ter algum sentido e que, se ele hoje está vivo nesse frio de outono, muito se deve a sua geladeira amiga. Afinal de contas, se não fosse pela falta de interesse por parte dela, pela manutenção da temperatura dos picolés verdes, hoje não haveria história a ser contada. O homem estrambólico vive graças a inutilidade de sua companheira.
E isso é amor!

2 comentários:

JK disse...

A evolução do texto e a descoberta aos poucos de que se trata de um quase morador de rua e sua nova amiga, a geladeira, surpreende e agrada bastante. Parabéns, e também estarão entre os meus favoritos.

JK disse...

A evolução do texto é muito boa, sem falar da linguagem, que apesar de já conhecer um pouco teu estilo, ainda impressiona pelo vasto vocabulário. Estarei sempre por aqui pra continuar tendo o prazer de ler seus textos. Parabéns e um abraço.