sábado, setembro 23, 2006

É preciso dar um jeito , meu amigo


Na sua meia idade de 72, Erasmo Carlos cantou isto num refrão. E eu canto, inconscientemente e  agindo a lançar-me ao erro para à cura. Preciso respirar de novo.
A calma ofegante desses dias espalha estilhaços de mim. 
Lá se vai o sereno homem bom. 
Como diria o ensaísta  e poeta, Bertold Brecht, ao ser perguntado " No que está a trabalhar?", este disse: estou ocupado, estou a preparar o meu próximo erro".
Estamos, sempre, por mais que a tentativa seja o acerto vindouro, maculados a cair na vala comum do erro. Vida, pantera severa!
Preferi escrever somente alguns aforismos, por ora. Essa coisa de coesão tá ficando tão cafona...

sábado, setembro 02, 2006

crônica nº6 - homem zíper

Estava em pé. Peito em riste e cheio de bocejos - um calhorda. Andarilhava, e por conseguinte, tostando a sola numa dessas calçadas em mosaico, vadiei um sorriso sob o painel luminoso, bem perto do refluxo da rua larga. Minha luz, a mais opaca, falhava como contemplação de míope. Ao redor, uma teia de "apês", "puxadinhos", e só. Que vontade de sentir asco! Osasco brinca de ser metrópole (e brinca de rimar com asco). É isso; e isso é só um pouco da coisa: tem a ponte, as fontes luminosas e alguns calhordas (sinto que já usei esta palavra antes). E descrevo isto, esta paisagem, esta sensação, para emoldurar o plano de texto desta ocasião que busca retratar uma certa idéia que tive nestes dias. Trabalho na hipótese - na macha idéia - de tornar-me um zíper. Leu certo: valer-me por ser agora um adereço que divide e une duas fatias de um tecido.
Preciso da determinação felina de um zíper para vencer essa “briga de gente”. Você que está lendo aí em algum lugar do globo, já experimentou parar para refletir no quanto, na quantidade de tempo que passa ao dia pensando em você mesmo? Muito, e não é blefe. Cada um de nós, cada vez mais, maculamo-nos a ser narcisistas sociais. Novamente, empresto um causo para exemplificar a afirmação: estava na estação Barra Funda, saindo da faculdade com minha garota. E vejam vocês: segurava um belo tablete do mais puro e tenro chocolate. Fui andando, mas antes de chegar, uma criança, cinco ou seis de idade. Ela me aborda: tio, me dá um pedaço - respondo: não tenho dinheiro, desculpa.
Após isto pude ouvir: mas só um pedaço, por favor! - quanto sangue-frio. Não tive compaixão para ouvir o ser humano e dividir meu pedaço de comida; e para piorar, respondi maquinalmente, como se soubesse a intenção do moleque. Fui um zíper social naquele instante, abri caminho na multidão, logicamente, como máquina de zero e um, e sem observar que havia por perto um ser humano feito de matéria igual a minha. . Fiz o serviço e pronto - mas à pedido de quem?
Esta cena, confesso, provocou uma certa catarse, uma manifestação estranha dentro de mim. Fui um boçal de babar na gravata, um infame de quatro costados. Fui egoísta como um zíper; tal como um quarterback de futebol americano, abrindo caminho para o touchdown. Não me senti bem, sobrou espaço dentro de mim. Aleluia para quem disser um culpado por este comportamento - desde que esta culpa não se deite em mim.
Quase todo mundo se queixa do egoísmo nas grandes cidades. E é fato. De uns tempos para cá - estudiosos dizem que a coisa se acentuou a partir dos anos 80 -, o culto à vida sedentária, ao anti-socialismo do capitalismo, à desfragmentação das relações humanas abriu um buraco social, igual à complacência da camada de ozônio. Veja, como aquele "bom dia" de vizinho, o "obrigado" após o favor concedido, até mesmo o "oba", que sacramentava uma relação de afeto entre dois seres humanos está cada vez mais minguado na paisagem.
Não digo à toa: a arte imita a vida. A visita numa bienal de arte está cada vez mais intragável. Perceba o non sense das obras que compõem o chamado pós-modernismo? Um vil reflexo de nossa sociedade. Hoje, comum como estralar os dedos é contemplar o vazio inusitado. Se cada vez mais nos voltamos ao nosso " eu contemplativo" , ao egoísmo de zíper, a arte, logo, não precisará mais do consenso de um todo para ser considerada arte. Basta você, humano médio, decidir fazer alguma coisa e tachá-la como arte . Pronto, o que importa é o artista entender o sentido de sua obra; assim como uma tartaruga entende o sentido de seu casco. A relevância, bem, esta vem sendo tratada como o "sal a gosto" do tempero.
É pra se constatar analisando tudo isso, como num piscar de alerta de farolete de fusca, que a sociedade caminha sem sentido. Como pode haver sociedade sem sócios, oras! Conseqüência, também, do imediatismo das coisas: tudo é muito, e muito rápido. O tempo de antes - da frase "meu tempo é quando", de Vinícius de Moraes -, sinto, mas não existe mais. O tempo que criava gente paciente, detalhista; o tempo que criava minutos à mais até, agora faz de todos uma multidão de ansiosos - e pelo o quê? Hoje, somos parte de um processo, um pedaço de uma coisa sujeito à substituição a qualquer momento - trabalho é isto, é tudo reflete no humano, na relação de um ser com o outro. É inevitável. É questão de sobrevivência do capitalismo, e isto não é novidade: Karl Marx, o terceiro dos porquinhos da sociologia falou isso muito antes de mim.