quarta-feira, setembro 26, 2007

O (des)controle da imagem pública.



Conhecemos muita gente que deseja mostrar-se bem, aparentar tranqüilidade, representar jovialidade - a função do rosto é muito mais do que um cabide para o nariz, olhos, orelhas, cabelo e boca(bigode, às vezes). Nos trejeitos dos braços uma segurança que dá crédito e que arranca a atenção de uma platéia. Sua figura humana ostenta sensatez e credibilidade. Mas sempre haverá aquele que dirá, ''tá vendo a sobrancelha dele(a)?Parece que apararam com faca de açougueiro''', ou então, '''olha que engraçado, ele(a) manca de uma perna, é o famoso ponto e vírgula''.

Estes exemplos querem demonstrar a posição frágil do homem diante de um mundo centrado na cultura de massa, na exclusão das minorias e das diferenças culturais. De certa forma, o fenômeno da cultura de massas ajuda o pesquisador de comunicação, pois, ao trafegar por entre grupos de receptores, compreende que na consciência de um coletivo há uma série de valores, signos e repertórios que se repetem, ou que se revelam bastante semelhantes.

Um bom comunicador que manca em seu andar, não sendo o Roberto Carlos, será tido como um aleijado que fala bonito - ele não quer ser isto, mas a sociedade assim o quer. O ''rei'' Roberto, ao esconder sua deficiência de seu público age com sabedoria, pois sabe que o modelo de cantor aleijado não é hegemônico no seio de sua sociedade. Nelson Ned, em contrapartida, tendo de conviver com algo impossível de se esconder, é lembrado muito mais por sua condição anã que por seus hits populares.

É e diante dessa eterna possibilidade de desconforto, de desencaixe, de inadequação, que a figura do assessor de imagem faz tanto sucesso no meio artístico. Ele observa a cultura do artista e a transforma em algo aceitável pelas massas. E isto não serve somente para o ser humano. A prática pode ser aplicada a estilos musicais, tendências da moda, estéticas cinematográficas, livros, revistas, jornais, enfim, praticamente tudo que possa ser entendido ou visto como produto.

A solução para aqueles tantos que não têm condições de tirar dos bolsos alguns caraminguás para pagar um assessor com essa especialidade é se atentar à mídia, aos meios de comunicação de massa, que trabalham com aquilo que é visto como hegemônico, melhor, superior, aceitável pelo seu público; ou então, sendo um ''Nelson Ned'', que aceite a crueldade ao seu redor como algo inevitável. A condição que lhe é imposta provém de uma força impossível de se conter a curto prazo.

E levando em conta o alcance dos meios de comunicação de massa, concluiremos que a fórmula do sucesso está na reprodução de um conteúdo que reafirma os valores da maioria e que por assim dizer segrega uma minoria que não vê com empatia o modelo de cultura apresentado.  
 
É por esta linha discussão que chegamos a origem dos complexos, do bullying nas escolas, dos adjetivos pejorativos como ''baianão'', ''cabeça chata'', ''pobre'', do racismo, do preconceito de gênero e de classe social, dos playboys e seus carrões, das meninas e suas bolsas Luigi Vitton, do moleque com o mesmo corte de cabelo do Alemão do BBB, da disputa pelo melhor celular, da etiqueta à mostra do Jeans, dos estrangeirismos que nem sempre representam uma evolução lingüística, dos altos índices de audiência das novelas e da falta de fôlego deste que vos escreve, que trouxe à tona nem mesmo uma resma, sequer uma quirela, de como este bolo imenso apelidado de Indústria Cultural ncomoda as nossas vidas.

quinta-feira, maio 03, 2007

Condenado ao tempo contínuo

Fraco seria se meu erro crônico
Esfriasse de um jeito anêmico
A voz pariria fragmentos
E meu jeito ingênuo explodoria um verso

Eu quero é mais de mil invernos!
E a matemática de teu riso
Um marcapasso precipita o infarto
Contrariando a lógica, do que convém ser fato

Respiro prata, acho que é zinco
Acho que falta ôxigenio
Meter o meu nariz no vento
Deu nisso: arrasto o pé pela calçada
E eu vou morrer longe da sala
Nem meus meninos irão ver
- Papai se foi, foi sem querer
Abraça o velho e beija o vidro
Antiradioativo
- o caixão é alugado volta logo
Diz o menino, tamborilando o mogno

segunda-feira, abril 09, 2007

crônica nº 08 - Exército de urtigões.

Sempre preferi ficar na condição de espectador diante da vitrine. A festa dos boçais, dos ignorantes acéfalos, do sujeito que se suja por poder, dos industriários descendentes das capitanias, nunca incomodou esse meu pessimismo incurável. Apesar da descrença nunca arredei pé da reflexão, só que agora prefiro me render à conclusão mais primária: tudo vira bosta, ou já se tornou.
Num desses dias de inquietude movida pela cafeína que fervia no sangue, resolvi enfiar o pé no vidro e encarar os problemas com a faca nos dentes. Assumi o bandeirão e fui à luta.
Coloquei-me à disposição de um 3º semestre de jornalismo, gente que teve durante o curso aulas de Sociologia, Antropologia, Filosofia, Psicologia, o suficiente para reconhecerem a importância da alteridade, de ser um sujeito ético, da liberdade de expressão, da prudência para o exercício da profissão. Nada mal e me parece um começo para quem realmente quer enfrentar diariamente os problemas da comunicação social.
Uma pequena maioria me elegeu naquela quinta-feira, gente inquieta como eu e descontente com as desfeitas causadas pela coordenadoria do curso . Escolheram como representante um rapaz sem muitos amigos, reservado e respeitoso em sua conduta, teimoso, de humor oscilante e , acima de tudo, obsessivo em qualquer desafio que topa . Puseram à frente de 60 pessoas um sujeito inseguro nos três primeiros minutos de discurso mas que não quis parar de falar após o quarto. E a acústica promovida pela minha fala, meio grave e anasalada, e os argumentos desenhados pelas mãos cheias de gestos, cerrou minhas sobrancelhas cheias de pelo.
Toda essa fachada descrita não é personagem - este sou eu. Talvez, lá pra frente, isso tudo seja motivo para uma análise junto a algum psicólogo ou coisa que o valha ou talvez de uma cirurgia no septo nasal, para melhorar minha dicção. Assim como o Gugu fez, aquele do PCC.
Mostrei as propostas, organizei os argumentos, demonstrei a importância da democracia participativa. Minha consciência, hoje, não pesa uma bala. Incitei à classe a uma mobilização ética e necessária a favor de nosso bem-estar.
Vigorei na função durante umas três semanas, suficiente para entender que todos já se conformaram com as cartas que estão na mesa. Vi-me em o Povo contra Larry Flint; na pele de Nelson Rodrigues encenando Vestido de Noiva para os velhinhos do TFP tradição, família e propriedade); me vi apresentando um sambinha com fuzz guitar para a turma da bossa, lá de Ipanema, em 1968. Fiquei 21 dias, mais ou menos, dando crédito às virtudes humanas. Beijei o bonde.
O que ficou de tudo isso é essa capacidade do homem em destruir o desejo alheio por mudança. .A vontade coletiva é se conformar em não ter mais vontade. Esse foi o caso. Acreditei numa multidão de abutres que só esperavam o primeiro motivo para atacar a carne. Fui destruído em cima do palco.
Mesmo dizendo a eles que a Terra não girava em torno do Sol e que tudo o que fiz era bobagem sem tamanho - coisa que não era -, mesmo assim a inquisição aconteceu, pois aí sobraram as birras pessoais como pretexto. Daqui da fogueira tudo me dá nojo e nem Galileu me entenderia.
Criticar negativamente o indivíduo que toma a iniciativa, que vai para o ''risca faca'' em prol de um todo e que erra por tentar acertar parece ser mais vantajoso que discutir a importância de um trabalho em grupo, cuja tônica deveria ser a colaboração de ambos os lados e não a difamação preconceituosa de um trabalho. Há uma inversão de valores clara nisso tudo - todos se sentem bem no estado de sítio, atiram pedras naqueles que não concordam em estar na zona de conforto e ruminam a calúnia com a facilidade de quem masca um Babaloo.
Pois é, meus amigos e minhas amigas, estou fadado a ser mais um maldito no jornalismo brasileiro. E olha que eu vejo isso de um modo bastante interessante. Como diria Nelson Rodrigues, mais uma vez o cito, ''a estrela está no céu, quem não vê, não vê.Mas ela sempre estará no céu''. Os malditos geralmente têm biografias muito mais interessantes.
Então eu faço o seguinte: se os hóspedes querem banana, eu ofereço a eles um cacho A humanidade se revela a cada dia , e por mais que tente ser otimista, acabo me deparando sempre com um grande exército de urtigões da Disney, que matam à carabina qualquer um que se aproxime com boas intenções. Nem sempre é um homem branco oferecendo espelhinho pro índio, mas esse complexo de vira-lata (mais uma vez Nelson Rodrigues) que vem lá do descobrimento, ficou mesmo arraigado na cultura de muitos brasileiros. E podem ter certeza, os industriários herdeiros das capitanias do tempo de Dom Pedro continuam amando muito isso.

sábado, março 24, 2007

esfera urbana: curta bobagem

Aborto o rasante
Trago à face idéias cinzas
E o voo cai com meu quebranto
Chuto o espanto a frases curtas
Me conforto, deitado, no pé da cama


Trago a faca, faço um sulco
me dói o corte atrás da carne
Acho que fiz um bom disfarce
Ao atar o desatino
E a ousadia com mordaça

Serei um velho nessa praça
Com quatro filhos na garagem
Um vira-lata atado e triste
Desanimado amargo e insone

Mas mesmo amado
Descortinado aberto ao mundo
Sinalizo a cal muro
Que traz pra mim esse conforto
Ou será dor de desgosto?
Sei lá ,já fui tào outro
Desse lado sou anônimo
Endereço, bairro e pronto

quinta-feira, março 08, 2007

crônica nº 7 : Oh Suzana!


''Felicidade não existe. O que existe na vida são momentos felizes"
Boa parte das teorias filosóficas que pude ler até hoje chegam a um lugar-comum. Aristóteles diz, trocando em miúdos, que '' a felicidade é aquilo que você ainda não tem'' - somos todos, então, cachorros correndo atrás de seu próprio rabo, que vez ou outra conseguem mordiscar aquele pedaço longilíneo e distante do pescoço. Aliás, deixo mais para frente a discussão sobre esta frase que inicia o tagarelado.
Aqui no Brasil, esse negócio de busca à felicidade virou legado das ''Suzanas'', pois observe: em meados de 1990, uma tal de Suzana Marcolino casa-se com um velho careca e cheio de dólares chamado Paulo Cesar Farias, tesoureiro do presidente Collor e indiciado por corrupção passiva e falsidade ideológica; no início deste século temos Suzana Werner, loira, bonita, atriz global de sucesso, se engraçando num casamento relâmpago com Ronaldo, um jovem careca, mulherengo, rico e dentuço mas um boleiro nato; mais à frente encontramos no noticiário uma tal de Suzane Richtoffen, fruto da classe média paulistana, que mata os pais em prol de uma paixão proibida e de uma graúda herança; mais pra agora o caso de Suzana Vieira, outra atriz global de sucesso, que perdeu marido que tanto amava . O engraçado é que todas elas tiveram um insight de felicidade e depois descambaram para o lodo.
Ao longe, devemos ser parecidos a uma roda dentada girando em falso. Nietzsche coloca o conceito da ''vontade de potência'', algo como querer sempre mais para buscar a perfeição - mas ele ao mesmo tempo discute o que é a perfeição e realidade. Afinal, para que estamos aqui, correndo por tudo? E fecha o caixão dizendo que o ser humano é o mal e deveria ser destruído.
Fico pensando nas razões de viver de alguns sujeitos que encaro todos os dias, bravamente. Vêem numa calça da M Officer o motivo para borrar na cara um sorriso. Outros alegram-se quando a folha de pagamento vem mais gorda - uns reais a mais se comparado aos milhões que ele gerou à empresa. Alguns se animam com um fulgor incrivelmente esbelto por atingir a meta do mês. Outros, como eu, prudentes a ponto de apostar no pessimismo, seguem andando sob essa navalha que é a vida.
Palavras são navalhas, como diria Belchior. E quem cria a vida, ou seja, essa realidade que por convenção foi aceita são nossos textos, nossas idéias, nossas atribuições. O jornalista , por exemplo, é um masoquista. Tem como grande mérito adestrar a percepção, Só que ao perceber as coisas de um modo melhor, deve ter também o sangue-frio para escrever a respeito do que vê de modo sóbrio e objetivo. E em muitas ocasiões a realidade da cabeça dele - aquela que ele viu acontecer - não pode ser escrita no veículo de imprensa em que trabalha. Jornalista é, por ofício, um macaco claustrofóbico, encaixotado ou numa gaiola. Ganha o melhor doce e o guarda no bolso.
Voltando a essa história de busca à razão da vida, lembro de meus tempos de cursinho e das visitas diárias nos sebos do centro de Osasco. Por meio de alguns flashes, a lembrança recria um homem de meia-idade, chamado Tadeu, claramente perturbado, que certa vez me abordou na seção de revistas:

- Você conhece John Nash?

Pensei em Graham Nash, dos Hollies, foi a primeira coisa que me veio à cabeça, mas não era o caso. Esse cara tinha uns olhos arregalados, parecia um louco de pegadinha. Vestia uma roupa simples, um tênis sem cadarço, desses que nossos tios usam para ir à feira , mas não tratava-se de um mendigo. Antes de falar comigo, estava resmungando consigo, ali do meu lado. Então respondo

- Não, quem é ele?
- Ah, então. É que eu gosto dessa coisa de matemática né, Inclusive, eu fui professor de matemática no Estado. É muito difícil, minha cabeça ficava cada vez mais vendo a imagem dele... os alunos me deixavam louco, eu não agüentava mais...tive que ser afastado....aquela teoria que ele mostra na lousa, sabe; que ele coloca assim... [nesse momento ele começa a montar no ar uma equação que eu, como um boçal matemático, jamais poderei compreender]. Então! Aquilo e a lei que explica, entende?

Fiquei meio atônito, e confesso, com vontade de cair fora de lá. Estava atrasado para a aula, mas decidi ficar um pouco mais. Nas minhas mãos estavam uma série de LPs. Daí, ele emenda todo aquele discurso com outro ensejo, separando bem as sílabas no tempo: :

- É d - a - q - u -e - l - e f - i - l - m- e...estou procurando uma revista que na capa tem essa equação...uma superinteressante de 1992
- Poxa, eu acho que eu não vou poder te ajudar...
- Às vezes vem uns flashes, rapaz, parece um clarão na minha frente, e me aparece toda essa fórmula que ele faz.

Era incrível aqueles olhos dele, viam algo que eu não via. Era cômico também, ele sabia ser louco. Aquela idéia de louco que permeava minha imaginação de criança - descabelado, caolho, com olheiras - tendeu a sumir na idade adulta. Hoje em dia, me vem um signo muito mais próximo do triste quando evoco isso no imaginário . Ele, no entanto, se aproximava incrivelmente desse modelo de devaneio guardado na minha infância. Depois de um tempo, ele lá divagando, acabei ganhando segurança. Levei a conversa por bons minutos e entrei na onda dele, tentando ser mais louco que o louco. Depois, o cumprimentei e fui embora. Ele continuou falando, dessa vez sozinho. E eu fui ao cursinho mais feliz do que antes.
Não me lembro de toda a cena. Fazem três anos e minha memória não ajuda muito. Mesmo assim, darei espaço para uma crônica somente a essa história posteriormente.
O que ficou desse caso foram duas coisas: primeiro que fiquei feliz com a experiência, segundo, ele encontrou uma razão de viver, algo que não tinha quando dava aulas . E, muito embora aparentasse loucura, parecia-me muito lúcido ao falar de matemática. Algum tempo depois descobri que o tal do John Nash foi de fato um grande matemático, e que o filme que ele deixava nas reticências era "O gênio indomável'', que ainda não assisti.
É certo falar que após aquele fato inusitado, aquela felicidade de momento, cai numa triste maré depressiva ao não conseguir concretizar minha razão de vida daquele 2004 , que era passar em jornalismo na Cásper Líbero. Truman Capote, em um precioso conto dele, compilado no livro ''música pra camaleões'', diz que toda primeira consulta ao psicanalista conclui que a ansiedade é causada pela depressão. Na segunda análise, paga a peso de ouro, chega a concluir que aquele estado depressivo foi precedido por um momento de ansiedade.Neste caso , isto se encaixa perfeitamente. A ansiedade se misturou com motivação, felicidade (se é que isto existe), otimismo. Ela é capaz de esconder defeitos e anular a prudência, isto é, uma coisa bem perigosa numa prova de vestibular que decide uma vida em quatro horas.
Darei um tempo para você , leitor, retornar ao primeiro parágrafo. Trata-se de uma frase que conversa justamente com tudo que tentei passar aqui. Escrevi mais de cem linhas para que Odair José, músico popular fadado eternamente ao radinho da sua empregada, resumisse em um refrão. Aliás, dica minha; deixe de lado essa noção musical plantada pelo Fantástico, Silvio Santos e afins. A música que contém essa frase, "a noite mais linda do mundo" , sugere uma discussão vital ao homem civilizado - e melhor: tem um alcance junto às massas que nenhum livro de Filosofia consegue ter. Odair acerta na veia usando poucos versos, demonstra propriedade ao tratar do tema . Algo que certamente você não esperava de um artista popular. Odair já fez ópera-rock, escreveu músicas transgressoras taxadas como brega pelos ditos ''eruditos'', foi exilado do Brasil por ser taxado de ''transgressor à ordem'' nos anos de chumbo da ditadura e recebeu recentemente um tributo da cena musical independente brasileira - e você, ainda crê nos jurados do Raul Gil e na coluna do Álvaro Pereira Junior?
Nem um , nem outro: o que motivou esta crônica foi Odair José, um maldito por excelência.

sexta-feira, fevereiro 16, 2007

conto nº 1 - O asfalto segundo Otávio.

Situava-se entre o amor e o ódio. Já sentira o catalogo todo: culpa, dó, raiva, medo, inclusive flertou com aqueles sentimentos que somente os facínoras carregam. Boiando neste espaçoso meio-termo, no limiar da cólera mas nem tão longe da compaixão, a cara coalhada de mal elemento seguia adiante rumo à estação.
Neste dia, aquela coisa gostosa que era olhar as mulheres na rua, uma a uma, passando sobressalente à seu ombro, mesmo sendo diva e tal, sequer o comovia. Naquele momento, era um homem de plástico; flácido e frígido. Cafajeste de alma cortada. Sentia-se na pele de uma daquelas senhoras de quintal, lavando bosta com o esguicho, que todo os dias observava em seu caminho para o trabalho
Otávio estava assim, fétido - e não pelo cheiro do colarinho. Era sua mulher, senhorita com quase trinta, que o deixava afetado. E era justamente por isso que ele, cansado até às bocas, desviou de seu caminho para a esperar os vagões do trem.
Era seu meio mais fácil - e perto - para sair do marasmo urbano de cidade média. Vivia numa cidade meio vira-lata, pra lá de chinfrim.
Para ir à grande metrópole, Otávio caminhava alguns passos, suficientes - é certo - para borrar a sola de seus calçados com tudo o que é de mais pútrido - inclusive com a bosta que as senhoras "esguichavam".
Com os pés sujos, o homem carimbou o cimento da escada que dava acesso à estação. Àquela hora do dia - quase seis da tarde, momento de retorno do trabalhador para casa - encararia, fatalmente, a multidão do populacho local. Comprou a passagem, passou a catraca e esperou o trem chegar.A lataria chegava, sempre, apitando num longo decibel. A máquina estampava "FEPASA 1977".
Dali avistava o telhado da casa que morava, e que certamente estaria caso não ocorresse o que se sucedeu. Ficava possesso em cada momento passado, pensando sobre os motivos que o levaram a estar ali. De seu lado, um velho de asas abertas. Folheava um jornal com ânsia. Otávio entendia o grisalho: a novidade que ele buscava era a mesma que ele queria. Estava cansado de tapar o nariz para o ar.
O trem chegou, o moço embarca. A seu lado, logo ali na outra poltrona plástica, um casal entrelaçando-se. Otávio anteviu o futuro deles. Sabia que aquilo não iria tão longe, tão curto quanto à viagem de trem que pretendia.
A primeira viagem de trem foi lá perto dos doze. Antes disso, tinha pouco conhecimento espacial. Sabia que se situava numa cidade à beira da mediocridade. Logo sorriu quando viu o novo. Era cidade mesmo, com cartão postal vidrado nos olhos.
Mas logo descobriu que às idas precedem às voltas. Tavinho, apelido de criança, voltou a seu lar. Casa nos fundos, teto de estuque.
Enquanto a chegada vinha - observador que era - olhava para além da janela do vagão. Aquilo tinha jeito de passado - engraçado como toda beira de trilho não conversa com o presente. Fica lá, parada, esperando o trator demolir. Mas tinha gosto por aquilo. Ao invés de pensar na mulher ingrata, vislumbrava aquilo com uma disposição de quem aguarda um pantanal de beleza no pó da cal dos muros.
Sua mulher, Ana Flávia, o aguardava para ter com ele. Queria uma definição: ou o que ela queria ou acabou-se. Segurava Otávio nas mãos como quem guarda a tampa premiada da Coca. Otávio, liberto, sempre sofreu com isso. Tentou negociar várias vezes, mas ela era irredutível. Queria colocá-lo num aquário e lhe fazer festinha pelo vidro.
Trabalhava num desses largos cheios de gente. Era ali o destino final de Otávio. Ao sair da estação sentia calor. Era verão e o Sol se espreguiçava no chão em pleno fim de tarde, Era um cenário odioso, e ele odiava. Cheirava óleo usado, era um ambiente basicamente sujo. Essa coisa de cimento, ele nunca gostou. Lembrava-se das casas de alvenaria que chegou a morar. Aquela coisa eternamente inacabada o deprimia. Começava ali seu martírio.



- Preciso ser respeitado, entende?
- Então tá bom
- Não, você jamais me ouviu. Era para isto jamais acontecer.
- Tá bom, Otávio. Faça o que você quiser.
- Você me enche de bronca e se acha a correta. Será que precisamos continuar com isto?

Seria assim, ele sabia desde o primeiro carimbo na pedra da escada. Logo que a viu, cortada pela mágoa de não sei o quê, já imaginava que não haveria razão que criasse equação naquele momento .

- Então me faça chorar. Vê? Não choro por isto. Não me desespero por bobagem.
- Você acha que tudo isto é bobagem, Otávio, este é o problema.
- Sabe o que eu penso? Tá vendo tudo isso, tão grande? Essa cidade toda, mesmo desse tamanho, não consegue me deixar menos do que solitário, você não percebe isso. E tem mais: percebeu como canto rápido as palavras? Não sei, a cada dia me sinto cada vez mais ansioso. Sinto um nó a todo o momento, aqui, na garganta, sabe?
- Do que você está falando?
- Como aquela à frente. O senhor carregando a banana. Não vê como ele perdeu sua essência neste meio? O meio não o acude. Tem sobras e faltas e ninguém vê. É como você, Ana Flávia. Quando lhe conheci, com quinze anos, era só mais uma menina mimada nas asas do pai. Você sabe que o medo mudou. Nosso medo é outro. Não conhece nem um pouco o marido que tem. Tenho problemas, você não sabe?
- Tenho muitos problemas também, Otávio. Acabei de saber que devo abrir as rédeas para não perder você.
- Quem lhe disse isto?
- Aquela minha amiga que você não gosta.
- E porque a ouve, Flávia? Falo com um muro, toda vez!

Flávia, neste momento, larga a calma que a encobria. As pálpebras tremiam, parecia ódio mesmo. Otávio emenda outro argumento. O silêncio que precedeu deixou em ambos uma sensação física de mal-estar.
- Queria que você me ouvisse, Flávia. Tenho muito a lhe falar. Sou discreto às vezes, eu sei. Prefiro guardar e peco por isso.
- Somos dois doentes, Otávio.



Em meio a toda essa conversação, o casal se viu por várias vezes acuado pelo grande fluxo de gente que passava por aquela calçada. Era fim de ano, época de festas, e diante daquele conglomerado de comércios de todas as espécies. Otávio e Flávia eram somente dois animais pouco sabidos do que realmente significavam naquele instante. Eram somente carnes ambulantes que atiçavam os desejos dos vendedores de porta. O casal chorava quieto, andava. Abaixaram as cabeças procurando evitar contemplações indesejadas. Eram somente carnes estranhas.
Um rapaz com uma boina enorme - maior que a testa - vem no contrafluxo. Vestia-se como um entregador de pão dos anos 20. Um corpo estranho bem no meio daquela estética. Na dança que é vislumbrar um lugar longe sob o Sol, o casal, e mais ninguém, percebia aquela diferença no cenário. Pois bem; somente o casal os via. Pela primeira vez em todo o percurso, os dois se olharam; se olharam olho no olho. Não deram risada; não era momento de dar risada.
O céu se coloriu em pardo. Quase noite. Viram a praça se encher de velhinhos. Estavam mais amenos, como o vento que batia no prédio e desmanchava o penteado. Sentado à beira do asfalto, ficaram ali, esperando uma novidade para emendar um assunto. Muito embora fosse cidade, o clima era mais de silêncio. Otávio, sentado, cultivava sua maior mania, a de arrumar a camisa. Enquanto que Ana, com as pernas cruzadas, divagava sobre algum assunto, lá em seu íntimo. Dava sinais claros de que queria falar alguma coisa.Abria a boca, bocejava demais. As palavras eram engasgos.
Otávio sabia o quanto Ana era insegura nessas retomadas. Era como se estivesse no purgatório, à espera do juízo final. O veredicto, no caso, era uma palavra que fosse. O silêncio, como disse, deixava meio estática a rapidez que vivia no asfalto.
Nenhum dos dois tinha carro. Andarilhavam mesmo com a modernidade beirando à calçada. A modernidade, que já batia nas canelas há muito tempo pedindo a compra de um carro, não os comovia. Sobretudo a Otávio, pouco materialista, mesmo sendo um freqüentador de shoppings.

- A ansiedade é o mal do século

Otávio vocifera do nada. Busca uma voz serena, menos rouca do que a de costume Pega Ana em algum transe. De certa forma, mesmo não havendo um retorno por parte dela, ele sabia que aquilo a atingia. Parecia, até, que esta frase foi planejada durante todo percurso; como o saco de pipoca se enchendo no microondas, no avançar do segundos que precedem o apito da máquina.

- Veja como nós estamos mais calmas agora. Parece que nada aconteceu e tal. Eu até achei que seria o fim desta vez, mas sabe; acredito ainda que nós iremos nos acertar. Você não acha?


Alfinetada pela pergunta, Ana manteve-se intacta. Olhando em direção a algum ponto do asfalto à frente, sabe-se lá o que tecia. Parecia um ser em si, livre de qualquer desprendimento com a exterioridade. A moça depois de alguns minutos de receio se levanta com autoridade - e ela era linda. Ele ainda sentado levanta as sobrancelhas, meio que espantado com sua beleza de lady. Diante do cenário sujo que estavam, Ana ganhava ainda mais pontos com isso, pois seus cabelos acobreados se destacavam da argamassa cinza, borrada.
Começou a andar no labirinto que era os caminhos formados pelas árvores da praça. Não se mostrava previsível, mesmo Otávio crendo que sim. O rapaz, quase sorrindo, se esgueirava nas coxas das pernas para alcançá-la em um ângulo de visão melhor. Chegou num ponto que, mesmo se esticando não mais a via. Decidiu levantar-se e ir de encontro.

- Não se aproxime e tape os ouvidos!
- Calma, o que acontece?
- Sorri demais para você, escrevi cartinhas, muitas cartinhas.
- Do que você está falando? Ana pare de gritar.
- Anda não vai tapar os ouvidos? Então, irá me escutar, não é isso?

Otávio, meio sem saber o que se sucedia, assistia ao espetáculo que virou sua vida, do mesmo modo que todos que se aproximavam - com uma diferença básica: ele era um dos protagonistas. Aquilo o enrubesceu. O deixou com a cólera por entre os vales do rosto.

- Você está vendo todos os que se aproximam daqui? Flavio, Eduardo, Augusto, Sérgio, e até aquela moça atrás do Almir...

Começou a declamar os nomes de todos àqueles que, parados, assistiam o bom andar da cena. Apontava para cada um e, pausadamente, deixava correr o nome pelas papilas da língua. Falava continuamente, no mesmo tom e jeito, numa dízima periódica particularmente prazerosa a ela. Por fim, terminou declamação deixando reticências no ar.


- Poderia saber o que isto tem a ver com nossos problemas? De onde você tirou esses nomes?
- Pois saiba Otávio que estes homens vieram aqui para saudar você. Sim, foram ver mais um espetáculo de imbecilidade de sua parte. Estavam por ai, a toda hora, retirando tua atenção. São meus homens, de fato - e algumas mulheres também.
- Você me tirou a paz, me fez um boçal para entender as coisas; agora quer me deixar louco, paranóico ou coisa que o valha.
- Eu não trabalho aonde você pensa que eu trabalho, não freqüento os lugares que você pensa que eu freqüento. Não tenho o nome que você pensa que eu tenho; aliás, você nunca se importou mesmo, não é? Você me deu liberdade e eu retribui com libertinagem!

Além do alto tom de voz - quase um comício em plena terça de noitinha - Ana intercalava ódio e ironia, ponderando gargalhadas e gritos em seu breve discurso. Otávio descobrira o que de fato cercava a vida de sua mulher - e de uma forma incrivelmente inusitada.

- Mulher da vida, é isso que você é! (após Otávio gritar, todos começam a gritar e falar, outros ensaiam um grito em uníssono ''Lídia, Lídia''.
- Ouviu meu nome, Otávio?
- Eu quero morrer...
- Pois morra, mas se entregue antes ao coro de meus homens.

Dentro do bando que se ajuntou, cerca de 20 homens e 1 mulher, Otávio seguiu diante, levado pela pequena multidão que o empurrava. Não pertencia mais a seu corpo. Ana, que agora é Lídia - que havia subido num banco da praça em certo momento para amplificar o discurso - , desceu dali e se enveredou por uma rua nos arredores que dava acesso a uma pequena porta luminosa no fim do trajeto. Ninguém; nenhum policial sequer apareceu para desmontar a balburdia. Passando, ali, por entre os pedestres pouco atônitos , ia sem declamar destino. Ouvia-se somente ''lídia, Lídia'' em altos decibéis. Enquanto isso, Otávio seguiu quieto, levado pelos braços, como quem vai à masmorra pagar o crime cometido.
O homem que não fez nada de errado; matou-se por si só. Levado primeiro pela multidão de vinte e um. Depois, deixado pelo os que carregavam, caiu na calçada pela inércia, sem maiores resistências. Otávio agonizou sem alma. Dentro daquele ambiente noturno, sob a luz de mercúrio da rua, se repuxou, caiu na sarjeta e se posicionou no meio da rua. Esparramou-se no asfalto.
Colorido pelo negrume do pneu, Otávio morreu logo após a tentativa da freiada. Ficou, ali, às moscas, por alguns dias; afinal, o asfalto não come carne. E de noitinha, ninguém ligou no celular dele.



Dedicado a Nelson Rodrigues.

quarta-feira, dezembro 27, 2006

bip das sete (antes e depois)

Se rompe do ensaio
Se mexe e vai fundo
Enterra o nariz no sofá
Logo depois do bip das sete

(É esse o seu jeito
de fazer festinha no desinteresse)

Da ducha ao lençol, depois do café
Na fricção do antebraço
Sente o arder de seus ossos
Da ansiedade do porvir que não vem
Sem fatos pra encher triviais
Só pena; pasmo, a solução vacila
Acordado, a pressão surpreende cortando

Me equivoco, sou eu que evoco essa espada
Visto a calça, como o embrulho do pão
Encho o espelho, desmonto a espécie de choro
Largo o enguiço, prendo o esforço
Adio o espasmo de verso curto
E vou na calma, que o rosto não quer simular