quinta-feira, março 08, 2007

crônica nº 7 : Oh Suzana!


''Felicidade não existe. O que existe na vida são momentos felizes"
Boa parte das teorias filosóficas que pude ler até hoje chegam a um lugar-comum. Aristóteles diz, trocando em miúdos, que '' a felicidade é aquilo que você ainda não tem'' - somos todos, então, cachorros correndo atrás de seu próprio rabo, que vez ou outra conseguem mordiscar aquele pedaço longilíneo e distante do pescoço. Aliás, deixo mais para frente a discussão sobre esta frase que inicia o tagarelado.
Aqui no Brasil, esse negócio de busca à felicidade virou legado das ''Suzanas'', pois observe: em meados de 1990, uma tal de Suzana Marcolino casa-se com um velho careca e cheio de dólares chamado Paulo Cesar Farias, tesoureiro do presidente Collor e indiciado por corrupção passiva e falsidade ideológica; no início deste século temos Suzana Werner, loira, bonita, atriz global de sucesso, se engraçando num casamento relâmpago com Ronaldo, um jovem careca, mulherengo, rico e dentuço mas um boleiro nato; mais à frente encontramos no noticiário uma tal de Suzane Richtoffen, fruto da classe média paulistana, que mata os pais em prol de uma paixão proibida e de uma graúda herança; mais pra agora o caso de Suzana Vieira, outra atriz global de sucesso, que perdeu marido que tanto amava . O engraçado é que todas elas tiveram um insight de felicidade e depois descambaram para o lodo.
Ao longe, devemos ser parecidos a uma roda dentada girando em falso. Nietzsche coloca o conceito da ''vontade de potência'', algo como querer sempre mais para buscar a perfeição - mas ele ao mesmo tempo discute o que é a perfeição e realidade. Afinal, para que estamos aqui, correndo por tudo? E fecha o caixão dizendo que o ser humano é o mal e deveria ser destruído.
Fico pensando nas razões de viver de alguns sujeitos que encaro todos os dias, bravamente. Vêem numa calça da M Officer o motivo para borrar na cara um sorriso. Outros alegram-se quando a folha de pagamento vem mais gorda - uns reais a mais se comparado aos milhões que ele gerou à empresa. Alguns se animam com um fulgor incrivelmente esbelto por atingir a meta do mês. Outros, como eu, prudentes a ponto de apostar no pessimismo, seguem andando sob essa navalha que é a vida.
Palavras são navalhas, como diria Belchior. E quem cria a vida, ou seja, essa realidade que por convenção foi aceita são nossos textos, nossas idéias, nossas atribuições. O jornalista , por exemplo, é um masoquista. Tem como grande mérito adestrar a percepção, Só que ao perceber as coisas de um modo melhor, deve ter também o sangue-frio para escrever a respeito do que vê de modo sóbrio e objetivo. E em muitas ocasiões a realidade da cabeça dele - aquela que ele viu acontecer - não pode ser escrita no veículo de imprensa em que trabalha. Jornalista é, por ofício, um macaco claustrofóbico, encaixotado ou numa gaiola. Ganha o melhor doce e o guarda no bolso.
Voltando a essa história de busca à razão da vida, lembro de meus tempos de cursinho e das visitas diárias nos sebos do centro de Osasco. Por meio de alguns flashes, a lembrança recria um homem de meia-idade, chamado Tadeu, claramente perturbado, que certa vez me abordou na seção de revistas:

- Você conhece John Nash?

Pensei em Graham Nash, dos Hollies, foi a primeira coisa que me veio à cabeça, mas não era o caso. Esse cara tinha uns olhos arregalados, parecia um louco de pegadinha. Vestia uma roupa simples, um tênis sem cadarço, desses que nossos tios usam para ir à feira , mas não tratava-se de um mendigo. Antes de falar comigo, estava resmungando consigo, ali do meu lado. Então respondo

- Não, quem é ele?
- Ah, então. É que eu gosto dessa coisa de matemática né, Inclusive, eu fui professor de matemática no Estado. É muito difícil, minha cabeça ficava cada vez mais vendo a imagem dele... os alunos me deixavam louco, eu não agüentava mais...tive que ser afastado....aquela teoria que ele mostra na lousa, sabe; que ele coloca assim... [nesse momento ele começa a montar no ar uma equação que eu, como um boçal matemático, jamais poderei compreender]. Então! Aquilo e a lei que explica, entende?

Fiquei meio atônito, e confesso, com vontade de cair fora de lá. Estava atrasado para a aula, mas decidi ficar um pouco mais. Nas minhas mãos estavam uma série de LPs. Daí, ele emenda todo aquele discurso com outro ensejo, separando bem as sílabas no tempo: :

- É d - a - q - u -e - l - e f - i - l - m- e...estou procurando uma revista que na capa tem essa equação...uma superinteressante de 1992
- Poxa, eu acho que eu não vou poder te ajudar...
- Às vezes vem uns flashes, rapaz, parece um clarão na minha frente, e me aparece toda essa fórmula que ele faz.

Era incrível aqueles olhos dele, viam algo que eu não via. Era cômico também, ele sabia ser louco. Aquela idéia de louco que permeava minha imaginação de criança - descabelado, caolho, com olheiras - tendeu a sumir na idade adulta. Hoje em dia, me vem um signo muito mais próximo do triste quando evoco isso no imaginário . Ele, no entanto, se aproximava incrivelmente desse modelo de devaneio guardado na minha infância. Depois de um tempo, ele lá divagando, acabei ganhando segurança. Levei a conversa por bons minutos e entrei na onda dele, tentando ser mais louco que o louco. Depois, o cumprimentei e fui embora. Ele continuou falando, dessa vez sozinho. E eu fui ao cursinho mais feliz do que antes.
Não me lembro de toda a cena. Fazem três anos e minha memória não ajuda muito. Mesmo assim, darei espaço para uma crônica somente a essa história posteriormente.
O que ficou desse caso foram duas coisas: primeiro que fiquei feliz com a experiência, segundo, ele encontrou uma razão de viver, algo que não tinha quando dava aulas . E, muito embora aparentasse loucura, parecia-me muito lúcido ao falar de matemática. Algum tempo depois descobri que o tal do John Nash foi de fato um grande matemático, e que o filme que ele deixava nas reticências era "O gênio indomável'', que ainda não assisti.
É certo falar que após aquele fato inusitado, aquela felicidade de momento, cai numa triste maré depressiva ao não conseguir concretizar minha razão de vida daquele 2004 , que era passar em jornalismo na Cásper Líbero. Truman Capote, em um precioso conto dele, compilado no livro ''música pra camaleões'', diz que toda primeira consulta ao psicanalista conclui que a ansiedade é causada pela depressão. Na segunda análise, paga a peso de ouro, chega a concluir que aquele estado depressivo foi precedido por um momento de ansiedade.Neste caso , isto se encaixa perfeitamente. A ansiedade se misturou com motivação, felicidade (se é que isto existe), otimismo. Ela é capaz de esconder defeitos e anular a prudência, isto é, uma coisa bem perigosa numa prova de vestibular que decide uma vida em quatro horas.
Darei um tempo para você , leitor, retornar ao primeiro parágrafo. Trata-se de uma frase que conversa justamente com tudo que tentei passar aqui. Escrevi mais de cem linhas para que Odair José, músico popular fadado eternamente ao radinho da sua empregada, resumisse em um refrão. Aliás, dica minha; deixe de lado essa noção musical plantada pelo Fantástico, Silvio Santos e afins. A música que contém essa frase, "a noite mais linda do mundo" , sugere uma discussão vital ao homem civilizado - e melhor: tem um alcance junto às massas que nenhum livro de Filosofia consegue ter. Odair acerta na veia usando poucos versos, demonstra propriedade ao tratar do tema . Algo que certamente você não esperava de um artista popular. Odair já fez ópera-rock, escreveu músicas transgressoras taxadas como brega pelos ditos ''eruditos'', foi exilado do Brasil por ser taxado de ''transgressor à ordem'' nos anos de chumbo da ditadura e recebeu recentemente um tributo da cena musical independente brasileira - e você, ainda crê nos jurados do Raul Gil e na coluna do Álvaro Pereira Junior?
Nem um , nem outro: o que motivou esta crônica foi Odair José, um maldito por excelência.

Um comentário:

Anônimo disse...

belíssimo post sobre o poder sintético e revelador da música brega. Você vai gostar dos contos bregas www.contosbregas.zip.net